06/12/2016
O CASAMENTO DA MAMÃ LUCIANA
O boi protestou com uma voz ronca como se requeresse ajuda a deus. Era a última palavra que proferia antes de partir em pedaços para a barriga dos convidados.
- Hummm, hummm, hummm
Um líquido encarnado resvalou do seu pescoço e acomodou-se na bacia de barro, por onde a água tranquilizava-se. A bacia fartou-se e o líquido desertava para o chão.
- Benesse, trazer pote para pôr sangue de boi – disse Benjamim com uma voz de trovão.
Benesse, com calcanhares na nuca, correu para dentro e num zás-trás trouxe uma panela de barro tal igual a uma banheira no tamanho. Naquela banheira dormiu o líquido vital esperando a cozedura. Para não secar instantaneamente adicionou-se nele o sal da cozinha em quantidades insignificantes. Os convidados assistiam a vaca a sucumbir mas, a ganância, era de ver a realização do enlace. Todos pretendiam ver os noivos. A emoção danificava corações das testemunhas do casamento da mamã Lúcia. No alpendre os velhos abriam apetite com a cabaça de cabanga feita pela tia Maria que vagueava de mão em mão e petiscavam o sangue da vaca que partiu para o céu. Quando a tia Maria trouxesse o sangue cozido, tinha que ajoelhar ao entregar os velhos, como impunha a tradição. Ivo, que era o filho mais moderno do casal, chorava por um fragmento de osso; era osso de mwalako. Da cozinha, vinha o aroma da feijoada de tripa de vaca que invadia narinas e incitava estômagos desprotegidos de alimento. Naquela manhã não havia outra notícia, o bairro todo comentava sobre o casamento e os djicadores começavam a aproximar-se para inserir a mão onde não lhes competiam. Para não serem dados meia volta da festa matrimonial usavam como arma o canto de elogio aos noivos. Mucopote, quase lhe saía o coração pela boca devido a demora da noiva. Ficara muito tempo parado no altar com o padre e as pernas lhe queixavam. Um raio de suor desceu sobre a sua face e encostou o casaco de cor de luto. Tirou um lenço do bolso, limpou a face, limpou o casaco, ajustou a gravata e num tom de fofoca sussurrou:
- Minha esposa demora, acho que vou-me casar com a estátua da nossa senhora Maria.
Do outro lado da igreja, na casa dos noivos, a noiva vestida de cor de paz maquiava-se para impressionar a sua cara-metade. Pegou no espelho, pintou as sobrancelhas, os lábios e as suas mãos cobriram-se de luvas esbranquiçadas tal como o seu vestido. No final do retoque da maquiagem, dirigiu-se para a igreja. Porque o vestido era longo demais, Adelaide ficou sua guarda-costas ajudando-lhe a suportar aquele traje matrimonial. Chegou o momento esperado por Mucopote: a entrada da noiva. Todos se levantaram e entoaram o cântico de acolhimento. Via-se nos olhos dos noivos desejo de juntarem os lábios. O padre iniciou à celebração matrimonial:
- Viestes aqui para celebrar o vosso matrimónio. É de vossa livre vontade e de todo o coração que pretendeis faze-lo?
Mucopote olhou para Lúcia e soltou um pingo de lágrimas por emoção e Lúcia limpou-lhe com as suas mãos enluvadas. Os noivos responderam suavemente:
- É sim!
Continuando com as interrogações, o padre de raça negra avança com as celebrações:
- Voz que seguis o caminho de matrimónio, estais preparado a amar-vos e respeitar-vos, ao longo de toda a vossa vida?
Lúcia lembrou-se de quando conheceu Mucopote, há 20 anos atrás, no momento em que declamava poemas de amor para ela. Olhou para os seus filhos Milton, Benjamim, Adelaide, Benesse e Ivo, e, olhando nos olhos do esposo afirmou que sim tal como Mucopote. A igreja reclamava de espaço para albergar mais gente. Quem chegava tarde não entrava; assistia o enlace da janela, caso houvesse espaço. Depois de os noivos afirmarem positivamente as questões do padre e renunciarem o ruim, os anéis de ouro saltaram de alegria e pediram ao padre para se acomodarem nos dedos dos noivos. “Era o casamento dos dedos dos noivos”. Só se escutava gritos de moral por parte das testemunhas, os djicadores gritavam mais alto para tapar a cara escura que traziam:
- Beija, beija, beija! …
Lúcia soltou um sorriso brilhante que convidou os lábios de Mucopote a se atreverem num beijo permitido. Beijaram-se minutos sem conta até que o padre soltou uma gota de saliva para o chão; estava com doco-doco. Mas como padre casou-se com Maria que morreu há décadas, não pode mais traí-la, jurou ser fiel à igreja e às palavras da vida. No final das celebrações na casa de Deus, chegava a hora de tirar fotografias para não matar aquele dia saboroso. As viaturas puseram-se nas estradas em direcção a barragem dos Pequenos Libombos acompanhados pelo canto das buzinas num pim pim, manifestando também alegria. O sol que raiava arduamente abrilhantava a tarde e criava líquidos sudoriparos na face dos participantes. Como deus está em todos lados, abençoou o casal naquela tarde quente lançando gotas de água que duraram cerca de metade de 40 minutos. Todos ficaram molhados excepto os que se encontravam no interior de viaturas sem carroçaria. O destino das viaturas foi alcançado. Um lugar lindo mais que a sua própria beleza. Flores coloridas acariciadas por joaninhas, plantas perfumantes, ponte alta sobre o rio, brisa soprante sobre a barragem caracterizavam aquele lugar. Os noivos posicionaram-se sobre as flores brilhantes de ver e tiraram fotografias em posições quase incontáveis. Chegou a vez do fotógrafo engolir salivas ao fotografar os noivos aos beijos. Todos tiraram fotografias com os noivos, os djicadores tinham a cara em quase todos postais, pareciam donos da festa. Após o término do momento fotográfico, os noivos e convidados puseram-se nas viaturas e dirigiram-se à casa onde os comes e bebes esperavam. Pelo caminho escutava-se o canto das testemunhas que embelezavam os ouvidos dos que apeavam em várias direcções. Os djicadores sempre com voz mais alta. O carro que transportava os noivos parecia um limosine vindo dos Estados Americanos. Os seus olhos em forma de faróis piscavam ao ritmo das buzinas como lampadinhas enfeitadas em árvores natalícias. Na casa onde a festa estava prevista, as senhoras cozinhavam ao som das músicas de Zaida Chongo. O som do aparelho tocava tanto como o som das colunas da Kaya Kwanga ao transpirarem a música do Mc Róger. Os velhos cantavam canções tradicionais para melhor sentir o sabor da cabanga e sangue do boi. Sentados debaixo da acácia, ao pé do alpendre, aguardavam a chegada dos noivos e aconselhavam os mais novos através das canções que saíam das suas bocas. Tia Rosalina, com o corpo de hipopótamo e a cara pintada de mussiro, preparou uma canção em língua macua para receber os noivos. Era canção de Niassa, cantada pelos velhos de Etatara nos dias importantes.
Os carros dos noivos e testemunhas, com buzinas a reclamar, alcançaram o destino traçado; a casa dos comes e bebes. Tia Rosalina, cantando, saltou das escadas e estendeu capulanas coloridas para os noivos não pisarem no chão. Outras senhoras a imitavam com capulanas que trajavam e os noivos passavam sobre o tapete. A mãe da noiva, Antonieta Mano, não deixou de mostrar a sua dita. Com os dentes incompletos sorriu descontroladamente mostrando os espaços que dificultam o estrangulamento dos ossos e soltou palavra para a neta:
- E você Hermínia, quando é que vais casar?
Hermínia que na altura tinha 13 anos, ficou alguns minutos em silêncio absoluto a pensar na resposta e aliviou-se:
- Depois de sair mwali vou casar.
Sem demora o padrinho dos noivos em frente da mesa de honra tomou da palavra seu instrumento informativo e abriu a cessão de comes:
- Meus irmãos, hoje é dia de felicidade porque estes dois pombinhos resolveram se tornar num único pombo com tamanho de uma avestruz e esta acção serve de exemplo para os seus descendentes…!
No momento em que os padrinhos falavam, os noivos sentiam-se cada vez mais atraídos um pelo outro e abraçavam-se fortemente como se quisessem ficar a sós. Enquanto isso, Benesse reclamava baixinho:
- Estão a falar muito, queremos atacar os pratos!...
O padrinho viu a cara de fome que o Benesse trazia e entendeu que devia dar uma pausa às declarações de elogio aos noivos e ir ao que interessava a maioria dos testemunhas; “comes e bebes” deste modo, deu a palavra ao padre e este sem demora iniciou a bênção:
- Abençoai senhor o alimento que vamos tomar para melhor nos servir e amar!..
- Amem – responderam todos em coro.
Após a bênção do padre, viu-se mãos em diferentes cantos da mesa a seleccionar pratos de preferência individual. Benesse encheu o seu prato como se fosse Bud Spencer e Trinta em filmes de cowboy.
- Bene, você encheu muito teu prato, é feio. Sirva pouco e se não bastar sirva mais. Diminua um pouco para o meu prato – disse Benjamim desapontado.
Benesse, criança que era, rejeitou a opinião do irmão e começou a torturar o alimento em correrias. Comia depressa com medo de que os outros acabassem os produtos sobre a mesa. Tio Arnaldo abriu uma garrafa de cerveja e deleitou-se do líquido embriagador. Os mais velhos preferiam beber cabanga. Enquanto se comia e bebia do aparelho vinha um som calmo produzido pela corneta do Ken G. Após os comes e bebes seguiu-se a abertura da sala ao som da música de André Bucherch. Mucopote mostrou passos da era 60. Antonieta Mano nada sabia de músicas modernas, preferia dançar kwatchala. Dançou-se tanto até que declarou-se a hora de corte do bolo. O bolo era do tamanho do amor dos noivos, grande mais que o infinito. Mucopote cortou uma fatia e colocou na boca da noiva. O mesmo fez a noiva. Benjamim bebeu demais e dormiu na casa de banho. Os noivos despediram-se e foram para o quarto continuar com o casamento em carícias e… enquanto na sala, a festa continuava por parte das testemunhas do enlace matrimonial.
Milton Mucopothi in " Namilili"